As opiniões sobre a autobiografia de Maria Filomena Mónica parecem-me tão condicionadas pela subjectividade dos críticos em relação à pessoa da autora que começo por declarar a minha total isenção, se não mesmo enorme desconhecimento, quanto à sobredita. Antes de Bilhete de Identidade, apenas sabia que era uma socióloga com três nomes próprios, ligada ao António Barreto, com razoável obra publicada, em que distinguia o livro sobre Eça de Queirós. Lembrava-me, vagamente, de algumas crónicas ou artigos de opinião, que nunca me surtiram particularmente interessantes. O que não quer dizer nada: acontece-me o mesmo com a maioria das crónicas e artigos de opinião e é provável que MFM me pague o desconhecimento na mesma moeda.
A biografia é um género literário híbrido. Quando de uma figura historicamente relevante, documento para o estudo de um presente que influenciou muitos futuros. Quando de um cidadão comum, se honesta e rigorosa, documento valioso para a compreensão do mundo em que o vulgo viveu. Mas as aventuras de juventude, as peripécias românticas e as elucubrações íntimas do senhor Vulgo, biográficas para este, funcionam como romance para o leitor.
Dito isto, gostei de Bilhete de Identidade naquilo que narra de uma Lisboa que não foi a minha e nos mostra da limitada vivência da média burguesia urbana, católica e situacionista, dos anos 50 e 60. Ou seja, gostei da vertente National Geographic: os indígenas e o seu mundo. Com a chamada agravante foto de férias: o interesse de reconhecer lugares e pessoas que me dizem algo, in illo tempore.
Sendo a biografia de uma cidadã comum, o que ultrapassa o cenário documental passa a ser romance. E, nesse contexto, atraiu-me a construção das figuras da mãe, do pai e até da avó materna e do avô paterno da autora. Obviamente porque MFM também os romanceou. Não que não tenha procurado ser rigorosa, mas ninguém faz sociologia em seara própria: vemos sempre as pessoas que nos definiram como seres humanos de forma reflexa.
O restolho está na opção quanto ao relato da vida pessoal da autora. Aqui não há nem rigor documental, nem interesse ficcional algum. Obviamente, MFM tinha de fazer escolhas: o relato de uma vida não cabe nas páginas de um livro, mesmo em dois volumes. Optou por esbater da sua história irmãos, filhos e amigos, que aparecem como figurantes, e por realçar, mas retratando-os de forma unidimensional – apenas na vertente do relacionamento que com eles teve - os homens da sua vida. Acredito que tenha tido intenção de proteger a privacidade dos primeiros e pouco interesse nos segundos, para além do relacionamento amoroso. Mas isso tornou o livro coxo como biografia e raso como romance.
Numa perspectiva documental, teria muito mais importância saber, por exemplo, que dificuldades enfrentou MFM para dar aos filhos uma educação generosa e desempoeirada na Lisboa dos anos 60 e princípio dos anos 70 do que a enumeração das suas relações sentimentais. Ou até saber como geria as finanças. No limite, mesmo o preço do arroz seria mais relevante. Poderá argumentar-se que a autora relatou os factos da sua vida com a importância que para ela tiveram? Não, falácia. Afastando o preço do arroz, é evidente que a educação de um filho é bastante mais marcante do que o gajo com que se dormiu meia dúzia de vezes entre dois amores.
A opção pelos casos de coração poderia ter sido acertada, se os homens existissem para além da autora. Como aconteceu com a mãe, a avó, de certa forma o pai e o avô, que tiveram dimensão própria na obra. Mas os homens são quase todos pouco definidos, sem grande elemento de conflito interno, com a ligeira excepção do primeiro marido e de VPV, mesmo assim meros esboços. Pelo que esta linha, que domina a biografia, lhe retira valor documental, sem acrescentar qualquer interesse novelístico.
Aos panegíricos de que se trata de um livro brutalmente corajoso, em que a autora se expõe sem pruridos moralistas e sombras protectoras ou, no pólo oposto, aos gozos, muitas vezes pueris, de que se trata de uma manifestação de exibicionismo de uma fulana convencida, sem respeito pela privacidade alheia e que escreve mal, respondo serem ambas atitudes desajustadas.
Por um lado, a exposição é fogo fátuo. Em Bilhete de Identidade, as histórias de cama - que não de sexo - são meras enumerações, nada acrescem ou diminuem. E o relato da vida nada revela que a autora não queira que se saiba. Por outro, os gozos cheiram a melindre parolo ou a vontade de demolir: nem MFM escreve mal, nem Bilhete de Identidade é um tablóide. Embora a reputação de o ser tenha ajudado ao seu sucesso. Que, claro, é indesculpável para quem se melindra facilmente. Quanto ao facto de a senhora ser convencida, pois será… mas não tenho nada contra pessoas convencidas, excepto quando são incompetentes, e a biografia é competente. Pouco mais, mas pelo menos.
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